sexta-feira, 27 de abril de 2012

Mais das 3h

Acordou pela noite emanando suor agressivo; e logo espalhou pelo leito uma umidez repelente - morrinha que o fez rolar pela cama por um quarto de hora - e já não podia ficar relaxado.

Passada a inquietude, decidiu pela utilidade, e um banho pareceu boa ideia. Mas no primeiro solavanco, arremessou o copo e o resto d'agua que bebera ao deitar, fazendo dançar mil brilhinhos trepidantes pelo chão - uma bela exibição trágica, como faziam no teatro grego.

E da impotência que sentiu, até esperou que os cacos terminassem de se enfiar pelos cantos, antes de exaurir sua raiva contida - o que era boa parte do ódio: a culpa clara, idiota e irrevogável, mais o silêncio abafado da noite; e assim, sobrou engolir um digníssimo berro, que voltou para dentro, como o desgosto de uma gofada azeda.

Bastou-lhe então o próprio afago. E lamentos mais tarde, esboçou os passos macios que o levariam à porta. De um copo tão longo, ficou surpreso por escapar ileso. E na primeira calmaria, insinuou pensamentos que o levassem a deixar a limpeza para depois, mas envergonhou-se de todos; e já virando para buscar um bom esfregão que tinha, notou uma luz diferente vinda do quarto de seu velho pai.

Julgou como fruto da primeira impressão, em meio ao breu e ao sono, uma coloração amarelada, agressora da embriaguez de seus olhos. Mas sua aproximação tornou claro aquele brilho distinto, que induzia um tom de mal gosto agressivo, quase libidinoso, dando ao quarto mal hálito e aspectos de sujeira e porre. Esteve aflito por um tempo, imergido em hipnose vaga, das que afastam as respostas.

E ninguém dormia por lá - àquela hora?... bem às três da madrugada, rotineiro como era, o homem deveria estar ali, ou ter alertado qualquer ausência! E então sobreveio o nó de um anseio encoberto, como um grito que se ouve longe, e pela distância ser tal, não se move para ajudar.

Mas em um estalo, talvez pelo despertar completo, o engasgo que precede um choro entalou na garganta, e precisou de vez de uma companhia qualquer, para dividir logo tudo, para dividir-se... - das mágoas do copo, dos tormentos da luz, da falta do pai.

Contava com o irmão, que dormia ao lado; e ao menos sentia um esboço de ar escapando pela soleira da porta. Mas ao abri-la, furtou-se de toda a serenidade e foi tomado pelo terror de um vazio completo: não havia ar, não havia irmão... não havia mobília, e quase pendeu para o lado ao notar que não havia nem tintura nas paredes.

Em três passos de retirada, estufado de um novo grito guardado, bateu a porta e olhou em volta. Ofegava a narina como um touro, suava de respingar o assoalho. Checou as costas do sofá, atrás de todas as portas, embaixo de todas as camas; correu pela casa em busca de algo que lhe desse o susto completo, pois aqueles sinais espaçados eram demais para uma mente sugerida. E ao voltar à cozinha, em um dos giros de corpo da ronda nervosa que fez pela casa, quebrou mais um copo - e esse estremeceu também o fundo de sua alma.

(Continua)

terça-feira, 17 de abril de 2012

Interagindo

Referente ao comentário na minha última postagem:
"A última edição da revista Discutindo Literatura trouxe uma pequena matéria sobre o título. “Por que Nietzsche está na moda?” e chega à conclusão de que, por ele ser um dos filósofos mais fáceis de ler e dado que a sociedade moderna exige rapidez, ele é perfeito para qualquer rebelde sem causa. O que você acha?"
Anônimo, apenas com algum esforço minha imaginação concebe uma rebeldia 'sem causa'. Vindo de uma publicação literária, seria como, em paralelo, se dissesse que a própria arte de escrever apenas para si (para agradar-se) nasce da vagabundice, e não da crítica.

Sempre tem causa.
E tendo, daí a ser ou não estúpida... (como insinuado pela revista) - a que isso me diz respeito? ou à Nietzsche?

(Respire para as interrogações:)
E ora!... não é sabido que temos todos uma ampla propensão a conceitos e atitudes vulgares até que se apanhe o suficiente, antes de perdermos o gosto pelo ridículo?... Chego a deleitar-me com as tolices dos meu dias... pois, do contrário, como poderia valorizar o crescimento? Ou melhor: haveria crescimento? E essa rebeldia vazia não é a tal - como chamam...? - fase?! ou também: confusão? e a própria dúvida?... e há algum mal no barro, antes que receba a mão que dá o molde? Ou ainda: por que deveriamos distinguir o que em muito nos une?...

No mais, não é a causa de um livro se preocupar com as causas alheias... pois não é ele, por definição, a sua própria? - ainda que às vezes um retalho, não é sempre um novo produto? Que bom que os rebeldes 'descausados' estão à procura de uma, não?...

Mas (não vá se confundir!) é sim muito bom que se fale de ideais para falar de Nietzsche, (e atenção ao paradoxo que indica a fraqueza da afirmação da revista:) pois é deles que ele trata - trata de torturar!; de brincar, como uma criança e uma bola de aniversário: pega, explora, enfia a unha e explode! - e é a parte que mais lhe agrada.

Pois então, que chame de "sem causa", "causa ruim" ou qualquer coisa. O que for flácido, hipócrita, mal cheiroso ou idolátrico (nomearei de "causas fracas", para comparação) cairá de joelhos e será empunhalado com pompas, com todo o merecimento que ele encorpa ao seu ritual.

Não vejo mal nos pobres coitados.
Mas rebeldes sem causa - voltemos ao termo - não sobreviveriam.
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Anônimo, não esconderei que, certamente, ainda não respondi bem à sua pergunta. Sei que não quer saber das cascas, e sim das polpas. Isso virá. É que acabo me perdendo nos floreios perfumados e postergo as respostas completas; não é meu dom ser objetivo. Mas também não estou com pressa. Tenho muito a falar sobre o assunto, mas não agora. Vim só movimentar o ambiente e mostrar o quanto valorizo as nossas interações (falo de todos os que comentam, seu orgulhoso!).
E, por enquanto, caio de sono e me retiro, não me entenda mal. Abraços.