sábado, 22 de fevereiro de 2014

Desabafo em conjunto











- Ah, quando pudemos ver (dos mortos,
de um sebo retirado de seus corpos)
cada aroma que sentiram,
cada ideia que ocorreu,
tudo impresso em folha A4
por esbanjo meu e teu - 
vivos, como sempre abusados,
remexendo no que já morreu...

- E o homem teve o que queria
sem saber no que ia dar:
como pálida estrela guia,
pôs-se a girar
confuso e solitário,
bem no centro de um universo
cuja casca, em seu inverso, 
era um espelho imaginário. 

- E o instinto feito em drama,
o já unânime condutor humano,
agora eximido da cisma de dama
assumiu, com cinismo,
sua carga de engano...

- Assediado pelas mãos próprias,
a ninguém mais pôde culpar
quando tudo se fez em cópias
de um todo asqueroso 
muito aquém de seu antigo lugar.

- E na gloriosa cama de deus -
de onde fluiriam 
o cúmulo dos sonhos meus!
eles que embalados
pela cálida e permanente paz 
da monstruosa onisciência, 
que tudo traz:
ternura, alento, potência! -
e deitados então sem resistência,
no berço que do suor herdamos
dormiríamos reinando de felicidade 
um sonho de criança de dez anos...

- Mas não!
Em acelerada erosão
mal vimos chegar foi o inferno
e o diabo, garçom da contradição!
contador da nossa vergonha!
desta vez escamado em cegonha
para de novo emboscar
esse cão!

- Ah, e o castigo infernal -
e o que mais faria mal? -
viver com prazer em excesso
sem saber discernir a quem...
e aturar só galhofas crismadas
que não fazem mais rir ninguém...

- E agora, então, o que passa?
Um enforcado absorto,
em tudo azarado,
pendurado e não morto -
sim, saciado de corpo,
mas para sempre disposto assim:
um nada sem gíria e sem raça
de exemplo exposto na praça.